Delicie-se

    — Tenho que elogiar o projeto, porque está muito bem escrito, mas ao ler fiquei em dúvida sobre a importância dele, porque me parece que já existe uma ampla bibliografia sobre o tema, a qual inclusive você cita extensivamente, então não posso assumir que a desconheça. — o professor falava em tom amável, logo depois da rodada de apresentações. Tinha uma tatuagem no pescoço que escapava pela gola da camisa verde e branca e óculos de casco de tartaruga. — Então, preciso perguntar: “O que você pretende com este projeto, que outras pesquisas anteriores já não realizaram?”

    Felizmente a primeira pergunta foi fácil. Algo que tinha certeza de ter escrito, de um modo ou de outro, nos objetivos.

    — Temos muitos estudos que estudam a revolução por um viés macro, explicando o movimento agregado das forças políticas e sociais, e também uma profusão de material de memórias sobre esta época, tanto trabalhos históricos que estudam essas memórias, quanto trabalhos de memória individual e institucional, na literatura, cinema, etc. — começou a explicação — o que estou procurando é a ligação entre estes dois. Como os atores políticos e sociais encaixam suas ações nessa macro história e como essa macro história contradiz ou corrobora essas narrativas. Existe um esforço da memória institucional de fagocitar as memórias individuais em uma única narrativa coerente e triunfalista, mas me parece óbvio que esse tipo de coerência é impossível em um processo histórico. Por outro lado, temos vários atores que, em suas memórias, fazem parecer que eles, pessoalmente, ou seu campo de organização, foram os protagonistas indispensáveis do processo revolucionário, e também me parece óbvio que essas narrativas parciais não podem ser todas, ao mesmo tempo, verdadeiras.

    — Então, no fim, o objetivo é complexificar as narrativas macro, introduzindo as dissonâncias vindas de memórias individuais e, ao mesmo tempo, tornar essas memórias mais coerentes ao cotejá-las entre si?

    — Podemos ver assim, mas não acho que esse seja o principal. — escolhia as palavras com cuidado, e por isso falava devagar. O professor lançou a pergunta, e não saberia dizer se era uma casca de banana ou não. Essa seria uma forma de descrever o trabalho, mas não gostava dela. — Me interessa mais estudar as tensões entre as várias narrativas, tanto as memorialísticas quanto as históricas. Não sei se tenho condições, no prazo do mestrado, para chegar a construir uma outra narrativa a partir da minha pesquisa, mas creio que consigo encontrar e apontar as tensões e concordâncias entre as que já circulam. Só depois de ter essa compilação é possível avaliar a factibilidade de reunir esse material em um conjunto coerente.

    — Você faz uma escolha metodológica pela Historia Oral como viés metodológico, — outra professora da banca faz a pergunta. Talvez já esteja aposentada, pela idade. — mas entre os informantes que você aponta que gostaria de entrevistar estão vários autores de livros e textos acadêmicos. Nesse sentido não seria mais fácil usar estas fontes escritas? Fico curiosa com essa escolha pela História Oral.

    — A bem da verdade, já li, ouvi e assisti quase toda a bibliografia nacional produzida sobre o tema — pelo menos uma das perguntas pera as quais ensaiou foi feita, sorriu mentalmente, enquanto respondia — e essa leitura me deixou com muitas dúvidas. A escolha pela história oral é exatamente a escolha pelo método que pode me ajudar a responder essas dúvidas deixadas pela bibliografia.

    — Interessante você não mencionar algumas dessas dúvidas no projeto. — a professora sorria amável, como se estivesse oferecendo uma grande oportunidade, mas esse talvez fosse um dos pontos mais sensíveis do projeto. — Poderia compartilhar uma delas conosco?

    — Claro. O mais óbvio talvez seja em relação ao grau de independência da Nossa Voz. — a companhia tinha começado como um jornal partidário, depois que o partido cancelou o projeto seus membros continuaram de modo independente e, eventualmente se tornou um blog, depois um canal de vídeo na internet, finalmente uma emissora de TV durante a revolução para, hoje, ter sido absorvida como emissora estatal. — Pelas memórias do Genivaldo Santos, é como se ela operasse sob orientação partidária desde o início dos anos 2000, algo que ele repete em várias entrevistas quando o tema surge. Porém, no manifesto Comunicação e Luta de Classes de Juliana Braz de 2012 ela aponta a independência da Nossa Voz como elemento fundamental para seu sucesso, o que ela reitera nas suas memórias de uma década depois, já depois da revolução.

    — Então você acha que alguém está mentindo? — Essa era a casca de banana, apesar do sorriso gentil não ter mudado.

    — Não necessariamente. — a resposta ensaiada estava na ponta da língua — Até hoje não consegui um material em que Juliana ou outro membro da Nossa Voz explicasse os termos dessa independência, assim como não achei uma explicação dos termos das orientações que Genivaldo menciona. Mas mesmo que alguém esteja mentindo, há uma multiplicidade de motivos possíveis, como por exemplo a questão da legislação de 1999 que proibia partidos de terem emissoras de televisão, o que tornaria a emissora ilegal, assim como tornaria ilegal ela receber financiamento de sindicatos, caso tivesse ligação mais direta com um partido político.

    — Mas você não acredita nessa possibilidade, uma vez que Juliana reafirma a independência depois da revolução. — ela não parecia querer desistir do tema.

    — Ou não queria entrar em contradição; ou tinha independência tática, mas não estratégica; ou tinha tarefas táticas a cumprir, mas independência para além delas… — A enumeração tinha o cuidado de não levantar hipóteses contrarrevolucionárias. Provavelmente essa professora essa a representante do Diretório de Disciplina Revolucionária que participava das bancas sobre a Revolução. Havia limites claros sobre o que se podia ou não fazer de perguntas e afirmações. Tinha lido as Diretrizes de Disciplina Revolucionária para Pesquisa mais vezes que qualquer outro material enquanto escrevia o projeto.

    Ela não respondeu, dando abertura para outros membros da banca continuarem suas perguntas. A outra professora, que ainda não tinha perguntado aproveitou.

    — Uma coisa que me preocupou quando comecei a ler sua lista preliminar de informantes é o fato de serem pessoas já de idade e/ou bastante importantes. — ela passou a unha comprida sobre uma página do projeto, procurando um nome — Bianca Três, por exemplo… é ministra da Casa Civil, Gustavo Rios tem 98 anos. Você tem uma estratégia para acessar seus informantes?

    — Esses são apenas alguns, e não tenho uma estratégia mais elaborada que tentar contato de modo persistente, mas não conseguir entrevistá-los não seria um problema. Nos seus relatos em bibliografia eles mencionam uma infinidade de pessoas que tem agendas menos cheias e poderiam ser entrevistadas. Tenho um diagrama do grafo de pessoas mencionadas na bibliografia que li e, em poucos casos há questões em que uma dessas pessoas com menos chance de acesso seria a única capaz de lançar luz sobre o tema.

    — Isso é bom. — ela respondeu, mas sua expressão não transparecia satisfação. — Mudando um pouco de assunto, como você pretende financiar as atividades de pesquisa, porque é o tipo de projeto em que prevejo uma grande necessidade de viagens.

    — Eu… — talvez fosse a única pergunta em que não poderia responder com a verdade. Sabia que esse era o ponto fraco da pesquisa, porque realmente não tinha como bancar seus custos, mesmo se conseguisse uma bolsa. Metade da estratégia era tentar conseguir apoio da universidade para apresentações em eventos, e aproveitar as viagens para as entrevistas — tenho esperança de conseguir realizar boa parte das entrevistas por videoconferência. Além disso, sou beneficiário do Passe Juventude, então devo conseguir fazer ao menos algumas viagens através do programa.

    — Não sabia que você era beneficiária do Passe Jovem. — ela parecia subitamente interessada — não precisa me responder se for pessoal demais, mas pode me falar um pouco sobre o seu histórico familiar?

    Que tipo de pergunta era essa? Poderia entender perguntar sobre a situação atual, porque afeta a factibilidade da pesquisa, mas o histórico?

    — Não é pessoal demais, mas… posso perguntar também o motivo da pergunta?

    — Nada demais, é que um dos meus interesses de pesquisa é o histórico de estudantes de camadas populares no ensino superior. Talvez seja melhor eu entrar em contato com você depois da entrevista.

    — Não, tudo bem. — respondeu aliviado — Bem, minha família é do interior e se mudou para Quarac quando tinha seis anos. Meu pai trabalhava na construção civil e minha mãe era doméstica. Bastante comum, imagino. Entrei na escola com oito anos por conta da falta de vagas, mas me avançaram para a segunda série depois de alguns meses porque já era alfabetizado. Durante os anos de tensão meu pai participou de uma greve geral e entrou em uma lista de exclusão por conta disso. Ficou dois anos sem emprego, mas conseguiu passar em um concurso para gari. Foi atropelado enquanto trabalhava três anos depois e se aposentou por invalidez. Durante o tempo que meu pai esteve desempregado minha mãe teve que aceitar trabalhos sem registro, mas eventualmente foi convidada para uma cooperativa de trabalho. Com isso, pôde processar os ex-patrões e, graças às indenizações conseguimos comprar a casa onde moramos. Quando terminei o colegial tentei alguns vestibulares públicos, mas não passei. Um ano depois consegui uma Vaga Pública, que hoje foi absorvida pela Universidade do Alto Areal. Como a Alto Areal tem foco em biológicas e agrárias, a graduação de História entrou em desativação.

    — De certo modo bastante marcada pela Revolução… quase todas as nossas, na verdade.

    — Tem uma última pergunta que gostaria de fazer, — o professor da tatuagem aproveitou a deixa para recuperar a palavra — sobre como você vê esse processo revolucionário, depois de tantas leituras. Alguns teóricos, como Michele Obsuan apontam como um sucesso da estratégia de construir as condições para a revolução, enquanto outros como Marcus Duarte apontam que o mérito foi de aproveitar a oportunidade quando as condições surgiram. Enquanto isso o seu texto, em vez de trabalhar com a dicotomia entre construir ou aproveitar condições coloca a contradição entre uma ação centralizada ou policêntrica ao lidar com essas condições.

    — Bem, a minha impressão pelos relatos é da presença dessa tensão entre uma coordenação central ou a existência de vários centros autônomos, enquanto a questão de construir ou aproveitar condições se coloca na categoria… — qual categoria? Como terminaria a frase? Não tinha lido quase nada sobre o tema e conhecia os autores só de nome. Nunca tinha se interessado por essa discussão, quanto mais juntado argumentos para refutar ela. — Me perdi.

    — Não precisa ficar nervoso. Quer começar de novo? — o professor perguntou.

    — Na minha pesquisa… todos parecem preocupados em aproveitar as condições e, quando possível, contribuir novas condições favoráveis. Vejo divergência principalmente em relação ao papel que cada grupo… não papel, importância, a importância de cada grupo no processo o grau de centralização, mas nas memórias eles parecem concordar na importância de aproveitar as condições quando surgem e de trabalhar para que elas surjam.

    — Muito obrigado então. Podemos concluir? — ele acrescenta olhando para os outros membros da banca, que concordam.

    Sai da sala com uma sensação estranha. A última pergunta tinha que ser a que respondeu mal?

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