Delicie-se

    O bar estava cheio. Fim de semestre. Várias mesas de plástico emendavam-se em uma linha comprida que lembrava uma mesa de refeitório. Devia estar alegre, mas apenas cansado. Ir e voltar, quase duzentos quilômetros cada, mais o estresse da entrevista. Era como se a vida estivesse em outro lugar, e não no seu corpo.

    Provavelmente veria muito pouca gente que estava na mesa depois de hoje. As aulas terminavam oficialmente semana que vem, mas já tinham todos defendido e a última semana, salvo exceções, era dedicada às atividades de recuperação. Não conseguia parar de pensar na resposta certa para a última pergunta. Não a importância de cada grupo, mas como se dava a coordenação das frentes, até que ponto havia colaboração ou competição entre elas.

    Você passa anos estudando a inutilidade de remoer os erros do passado, e não consegue aproveitar a despedida da graduação por conta de uma resposta menos que perfeita na arguição oral.

    — Vocês podem até pensar que eu falo isso todo ano — Geralda se levantou e começou a falar com a voz embriagada — mas eu queria dizer que essa turma é especial. — Não deixava de ser. Ela dizia com frequência o quanto nossa turma tinha sido fora da média. — Há três anos eu carrego essa tristeza enorme de ver o curso que eu trabalho há tanto tempo e ajudei a estruturar ser fechado, ao mesmo tempo que sinto esse orgulho selvagem de poder ter a melhor turma que ele já teve como uma das últimas.

    O fechamento do curso fazia sentido por todos os critérios racionais. A antiga Faculdade Comunitária de Quarac viu suas licenciaturas e cursos de humanas fecharem uma a uma ao longo do tempo. História era a última. A desvalorização das humanidades e da docência haviam feito a instituição focar nos cursos com mais empregabilidade e mais valorização, afinal, dependia das mensalidades. Quando foi estatizada, já não fazia sentido manter os cursos. A Escola Superior de Estudos Estratégicos ficava a apenas 170 km de distância e Alto Areal, apesar de mais distante, tinha exatamente o mesmo foco que a maioria dos cursos sobreviventes da Comunitária: Agrárias e Biológicas.

    Isso não quer dizer que não pesasse no coração, ainda mais no de pessoas como Geralda, que havia lutado com unhas e dentes contra o fechamento do curso por mais de uma década, antes da estatização.

    — Esse momento, essa penúltima turma, é como olhar os escombros que o progresso da história deixa como rastro. — a voz embriagada começava se tornar também voz embargada — Eu sei que se não fosse a estadualização e as bolsas permanência, eu teria perdido muitos de vocês no caminho, como perdi tantos alunos brilhantes ao longo de tantos anos. E não poderia estar mais feliz com o resultado final, da educação 100% pública, pela qual lutei tantos anos. Ao mesmo tempo, os avanços cobram seus preços, e uma velha sentimental que gostaria de ver esse curso florescer não pode ser mais importante que o bem geral. Vocês ajudaram a fazer desse fim algo glorioso, em vez de deprimente.

    Não conseguia mais conter as lágrimas, e não era o único. A melancolia agridoce do fim do curso vir no pacote da estatização vinha se acumulando há três anos em vários peitos, mas ninguém falava sobre isso.

    — A história segue seu curso, — ela continuava apesar das lágrimas — e desde a Revolução com muito menos tragédias do que antes. É uma dádiva amarga que a tragédia de hoje sejam os sonhos de uma vida, ao mesmo tempo que é uma bênção ser isso a lamentar em vez da falta de futuro de uma geração impedida de florescer, como tantas vezes. Eu quero que vocês lembrem duas coisas… — ela parou um momento para limpar as lágrimas e o silêncio no bar mostrou que não era apenas a nossa mesa a prestar atenção.

    — A primeira é que nós só estamos aqui porque muitas pessoas aceitaram os imensos os sacrifícios que a história exige. Mas a segunda é que fazer pouco e minimizar a dor desses sacrifícios, contar a história apenas das conquistas, é o maior desrespeito que podemos ter com essa dor.

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