Delicie-se

    Tentava não pensar na hora. O resultado preliminar poderia ser publicado a qualquer momento, e já tinha visitado o site mais vezes do que atrevia a contar. Tentava lembrar de que precisava apenas passar, que há dois meses o Congresso havia aprovado a universalização das bolsas de pós-graduação, que apesar de ser uma medida gradual, o número de bolsas já ia aumentar ano que vem, e com elas as chances de poder se matricular. Que o projeto estava longe de ser fraco, que por ser cotista as chances eram ainda maiores.

    Mas a racionalização nunca teve o poder sobre a ansiedade.

    As unhas roídas, como há meses não eram, tinha até conseguido passar pelo TCC sem roer, ficariam como documento da incerteza, fosse qual fosse o resultado publicado. Pensou em dormir, pensou em sair de casa, em se distrair com algum jogo… E ficou observando as redes sociais para passar o tempo entre as atualizações da página do PPG, aproximadamente a cada vinte minutos. A cartela de clonazepam pela metade estava em cima da mesa, mas não queria tomar. Enquanto as dores no peito não começassem não apelaria para os remédios, era o acordo que tinha consigo mesmo.

    — Beto! — O pai chamou de fora.

    Levantou, não sem a leve exasperação de ter que deixar de lado a frente do computador e atualizar uma última vez a página do PPG. — Já vai!

    Ronaldo estava sentado em um tamborete diante de um espalhamento de tranqueiras que ficavam guardados no barracão de fundos da casa. — Ajuda aqui, filho — ele pediu, sem explicar como.

    — Claro — Beto respondeu instintivamente, para depois complementar — Mas ajudar a quê?

    Os objetos espalhados no chão desafiavam o observador a encontrar uma lógica. Livros, cadernos, brinquedos, talheres, ferramentas… Nada útil o bastante para o uso cotidiano, nada quebrado o bastante para ser lixo.

    — Tem uma Troca de Memória no Centro Comunitário essa semana — Ronaldo explicou animado — e não sei o que levo para falar da formatura.

    A lógica dos objetos, Beto percebeu, era ele mesmo. Seus brinquedos, seus cadernos, suas tranqueiras, recolhidas ao longo dos anos por pais atenciosos. Puxou um tamborete para sentar perto dos vestígios da própria vida, documentos, diria o jargão da história, da cultura material de uma época.

    — Você ainda guarda isso? — perguntou folheando o caderno onde escreveu seu “primeiro livro”, quando tinha algo como dez anos.

    “Depois que os cachorros aprenderam a trabalhar na fábrica de ração, ficaram amigos dos gatos”… começava o primeiro parágrafo da última página, ocupada na sua maior parte por um desenho. Tem como o coração apertar e aquecer ao mesmo tempo?

    — Eu preciso queimar isso um dia.

    — Nem pensar!

    Ronaldo não era de falar muito. Beto também, e os dois juntos conversavam mais silêncios que palavras.

    — Só não quero que as pessoas leiam. — Beto falou com uma voz afetuosa entregando o caderno para o pai depois de uma longa pausa. Passou os olhos demoradamente sobre cada um dos objetos, tentando lembrar o que eram. A medalha de “honra ao mérito” que ganhara na escola por boas notas em algum momento antes de começar o sexto ano, uma lousa mágica quebrada que a mãe tinha pego no lixo de uma das casas em que trabalhou, alguns boletins escolares, uma foto com a turna do terceiro ano na festa de formatura, feita no quintal de casa, o caderno de capa dura em que tinha traçado a árvore genealógica da família depois de meses de pesquisa, a caneta e as penas nanquim que tinha insistido por meses para ganhar de aniversário, para usar pouquíssimas vezes junto com um desenho feito com ela que tinha certeza de já estar se decompondo no lixão, debaixo de camadas e mais camadas de dejetos,

    — Por que o desenho?

    — Queria pintar de criança. — Ronaldo pegou o desenho plastificado com sua única mão. — E a foto se perdeu na enchente.

    Tinha desenhado a avó, que não tinha conhecido, a partir da única foto dela que tinham. Morreu ele tinha dois anos, tirou a foto poucos meses antes, num natal em que um parente levou uma câmera. Tinha desenhado vários anos antes da enchente acontecer. A linha do tempo deixava claro que a enchente não era o motivo para guardar o desenho, mas o mais importante era início dela. “Queria pintar de criança”. Não sabia. Ele não falava mais disso, mas explicava porque tinha feito o sacrifício de comprar a caneta nanquim em uma época em que não foi fácil.

    — Para a troca de memórias, o melhor é levar a árvore genealógica e o TCC. — Beto pensava desesperadamente nas opções que teriam para o pai poder pintar. No Centro Comunitário até tinha um grupo de artesanato que pintava pano de prato e outras coisas assim, mas com as sequelas do acidente ele não conseguiria fazer algo figurativo tão fácil. — É só agora que alguém da família conseguiu o diploma, e o diploma é estudando a revolução que tornou o próprio diploma possível. — Talvez no Centro Cultural tivesse alguma atividade, apesar de ficar longe. Com certeza Ronaldo ia resistir. Tantos anos e ainda se sentia incapaz de vários modos. — Talvez algumas coisas que falam do menino mais na dele, que não jogava futebol, mas não o livro. — complementou com firmeza.

    — Você vai?

    — Claro. — Beto respondeu imediatamente, resignado em passar vergonha. A troca de memórias sempre foi um evento da terceira idade, apesar do esforço da organização de fazer dele intergeracional. Boa parte das participações eram como a que o pai planejava, um olhar para o passado motivado por um acontecimento do presente. Algumas vezes luto, outras celebrações. Não gostava da história que ia ouvir, do filho estudioso e dedicado, que enfrentou desafios, apesar de gostar do orgulho que o pai tinha. Não gostava do peso de ser obrigado a conseguir, a realizar o sonho de ser o primeiro da família a, mas gostava de sentir que essa família estava se libertando dos grilhões que a prenderam por décadas. Nunca que deixaria o pai sozinho, como se o orgulho dele não fosse bem recebido, e nunca que não expressaria toda a gratidão possível. Ele que se preparasse para passar vergonha também.

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