Delicie-se

    O canto mais distante da escola, literalmente. Terceiro andar, última sala do prédio da direita, junto da figueira.

    — Eu acho que vai fazer bem para você, se entre as atividades do contraturno1 você optar pelo Aconselhamento — a supervisora disse tentando despir a máscara ameaçadora e calçar uma cara mais amigável. Claro que falhou.

    Aglomerados no corredor alguns alunos acenaram amigáveis assim que chegou na metade do corredor e ficou claro para onde ia.

    — Oi. — Disse uma garota gorda — Mandaram você para o Círculo então?

    — Claro que ninguém está te obrigando a nada. — a supervisora respondeu à pergunta — Todas as atividades do contraturno são livres. Mas o Aconselhamento foi pensado exatamente para alunos que passam por momentos delicados.

    — Círculo? — perguntou.

    Quem respondeu foi um rapaz com uma cicatriz horrível sobre o lábio — Eles chamam de Programa de Aconselhamento Coletivo. Mas nós somos o Círculo.

    — Não é algum tipo de terapia ou algo assim. — ela já quase conseguia parecer simpática — Mas um espaço para que os alunos compartilhem suas dificuldades e apoiem um ao outro.

    — Tudo que você precisa para fazer parte de verdade é passar pela iniciação — um rapaz magro que tinha tingido o uniforme de preto completou sorrindo. — Sua sorte é que abandonamos o ferro em brasa ano passado.

    Passos ecoaram pelo corredor deserto dando ao chiste sobre o ferro em brasa mais importância do que deveria ter, o tornando últimas palavras. Pelo corredor um desconhecido, talvez vinte e cinco anos, se aproximava sorrindo.

    — Que bom que veio Roberta. — Ele começou a falar ainda há boa distância. — Me chamo Guilherme. A Magda disse que talvez viesse hoje.

    — Ligaram da escola. — a mãe disse enquanto colocava os pratos na mesa — Querem que você faça uma terapia em grupo lá.

    — Se empenharam muito para me colocar aqui. — respondeu deixando transparecer mais insatisfação do que gostaria.

    — Precisava ter contado do seu pai? — por trás da calma, o tom de desprezo que ela tinha passado a usar sempre que falava de Ronaldo, mas que nunca tinha usado com ela.

    — Não vai se arrepender. — Ele abria a sala sorrindo — Vamos entrando.

    A sala tinha pouco mais que pufes quadrados dispostos em círculo, em que os alunos começaram a se sentar sem cerimônia.

    O rapaz magro sussurrou ao passar por ela — Círculo. Vê?

    — Seria pior se eles descobrissem. — respondeu tentando fingir que metal fundido não subia pelo esôfago rumo à garganta.

    — Roberta, não sei o que a Magda já disse… — Guilherme começou assim que ela se sentou, ao lado de uma garota que parecia já ser do ensino médio. — Esse é um grupo em que a gente compartilha problemas, e ninguém tem soluções prontas, mas a gente acha que se apoiando mutuamente a gente pode chegar até perto de uma.

    — Todo mundo aqui tem problemas? — perguntou.

    — Qual o seu problema? — a mãe perguntou às suas costas enquanto corria para o quarto, esconder as lágrimas que ainda não tinham aparecido, deixando o prato intocado para trás.

    — Todo mundo no mundo tem problemas. — Guilherme corrigiu. — Os nossos talvez sejam mais óbvios.

    — Eu quero fazer Belas Artes2 e meus pais não querem. — A garota ao seu lado disse.

    — Eu acho que sou gay. — o rapaz magro completou.

    — Eu sou gorda. — a garota que deu boas-vindas constatou o óbvio, deixando outros significados nas entrelinhas.

    — Eu não quero fazer faculdade. — uma garota de cabelo muito curto, quase masculino, se manifestou.

    — E você? — Guilherme interrompeu as “apresentações”.

    “Meu pai foi preso”, estava a ponto de dizer, mas o que saiu foi — Minha mãe se fechou no silêncio. Não somos mais uma família. Ela… — o metal fundido começou a se revolver no estômago — Com licença… — murmurou enquanto saía para o corredor deserto. Na metade do andar ficavam os banheiros para onde começou a correr.

    Notas de rodapé

    1. Escolas em tempo integral costumam separar as atividades entre turno, com a escola que todos conhecemos, e contraturno, onde os alunos ficam na escola, mas realizam outro tipo de atividade, como oficinas, cursos profissionalizantes, projetos de pesquisa, etc.
    2. Uma questão que pode passar desapercebida é que você não vai conseguir estudar Belas Artes facilmente no interior. O curso mais próximo de São José do Rio Preto, onde nossa história se passa, é em Uberlândia, seguido por Campinas. Em ambos os casos universidades públicas muito concorridas. Ter um filho estudando fora é um projeto que exige envolvimento e sacrifício de toda a família, independente do curso, mas a disposição em se envolver costuma variar muito de curso para curso. Infelizmente Belas Artes é um dos que desperta menos disposição.
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