Delicie-se

    Não foi difícil achar a mesa do Círculo no refeitório. No canto.

    — Isso é um filme americano? — Perguntou ao se sentar.

    — Não, mas bem-vinda à mesa dos excluídos1. — Pâmela respondeu ao chiste.

    — Correu tudo bem ontem? — Paula perguntou à Pâmela assim que chegou mesa.

    — Depois daquele episódio não me batem mais. — ela respondeu com a fleuma exagerada — E se não me batem está tudo bem.

    — Você não devia falar assim. — Paula retrucou.

    — Por quê? — Pâmela perguntou em desafio. Marcus olhava a cena com ar cansado como se fosse a despedida de Casablanca.

    — Porque… — Paula iria dizer algo em tom exasperado, muito diferente da confissão do box do banheiro do dia anterior quando Roberta a interrompeu.

    — Porque não é verdade.

    — O que não é verdade? — Pâmela mudou de alvo, mas continuou no mesmo tom de desafio.

    — Que você não se impota mais. — Roberta respondeu em voz baixa enquanto desenrolava os talheres do guardanapo.

    — É claro que… — Pâmela começou a dizer algo, mas parou e voltou a dar atenção ao prato bufando. Toda a mesa ficou em silêncio até Arthur chegar.

    — Não consigo achar outra tríscele em lugar nenhum. — reclamou sem dar atenção ao clima pesado. — Isso não faz sentido.

    — O que não faz sentido? — Denis perguntou do seu canto.

    — O símbolo solto assim. As duas árvores fazem sentido. A tríscele abandonada no canto não.

    — Duas árvores? — Paula perguntou. — Do que você está falando?

    — Da Cabala e da Qliphot. — Ele respondeu impaciente.

    — Eu não contei. — Roberta explicou.

    — Ah… — Arthur fez menção de compreender. — Esteve ocupada, presumo.

    — Um pouco. — Roberta pegou a deixa — E explicar esse tipo de coisa leva tempo, você sabe. — Acompanhava a impaciência dos outros enquanto adiava a revelação.

    — Sim, a simetria das árvores envolve um pouco de matemática. E no fim, é uma questão secundária. Deveríamos é estar pesquisando se a escola tem um porão.

    — Tudo indica que não, e se você que é daqui tem dúvidas… é mais um fator.

    — Podem parar com a brincadeira e contar logo? — Pâmela resmungou de boca cheia.

    — Claro. Quem discute com quem já quebrou ossos alheios? — Arthur respondeu — No prédio da direita tem uma cabala invertida, no prédio da esquerda uma cabala e a Cabala também é conhecida como árvore da vida.

    — Definitivamente não é magia negra. — Roberta completou — Mas algo mais. A tríscele bate com isso. O três é sempre uma figura do todo, e se temos vida e morte nosso mago está representando o ciclo completo.

    — Nossa maga. — Marcus falou pela primeira vez.

    — Faz sentido. — Roberta respondeu lutando contra a vontade de comentar sobre o mutismo dele. — Afinal, é alguém que andou pelos banheiros femininos.

    — Eu sempre deixo escapar esses detalhes. — Arthur completou. — Mesmo tendo que esperar na porta de um deles por alguém que pudesse conferir uma hipótese para mim.

    — Você deixa escapar mais que isso. — Pâmela respondeu de boca cheia.

    — Essa tríscele… — Paula perguntou, talvez para abafar os comentários ácidos da Pâmela — Tem a ver com a Trindade?

    — Talvez. — Roberta respondeu. — É um símbolo mais velho que o cristianismo, mas significa mais ou menos a mesma coisa.

    — A charada da esfinge também é mais ou menos a mesma coisa. — Arthur replicou sem concordar com a ideia.

    — E o espírito santo seria o velho ou o bebê? — Marcus comentou, parecendo ter abandonado o mutismo.

    — Ele… — Arthur começou — Isso não tem sentido. A relação é Édipo tríscele, tríscele trindade, não édipo trindade.

    — Começou… — Pâmela resmungou enquanto se levantava com a bandeja.

    — O quê?… — Roberta perguntou enquanto Pâmela ia para baixo da figueira.

    — Pâmela odeia quando Marcus e Arthur fazem essas disputas de quem é o mais inteligente. — Paula explicou sussurrando.

    — Eles fazem muito isso? — Roberta continuou sussurrando.

    — Em pouco tempo você simpatiza com a Pâmela. — Paula completou rindo.

    Arthur e Marcus levantaram e se dirigiram para a figueira.

    — Perdi alguma coisa? — Paula perguntou.

    — Marcus roubou meu caderno. — Carla, a garota que queria fazer Belas Artes, respondeu incrédula. — O Marcus! — repetiu para dar ênfase. — Roubou meu caderno!

    Marcus segurava o caderno diante de si, com Arthur ao seu lado, enquanto Pâmela voltava com sua bandeja e cara de poucos amigos para o refeitório. Roberta levantou pensando em quanto perdeu nos poucos instantes cochichando com Paula.

    — … é maior ainda. — Roberta ouviu as últimas palavras de Marcus antes de perceber o que eles examinavam. Uma tríscele estava gravada em relevo no tronco da figueira, entalhe antigo e há muito cicatrizado. No caderno, Carla tinha desenhado a figueira e em preto e branco o símbolo ficava mais claro.

    — Isso é assustador. — foram as palavras que Roberta achou para comentar.

    — Se houver uma terceira, vai estar do outro lado da rua. — Arthur respondeu. — Na igreja.

    — Se estiver lá, isso sim, é assustador. — Marcus concluiu.

    Notas de rodapé

    1. Algo mais comum nos EUA e sua cultura de idolatrar "vencedores" e desprezar "perdedores", alumas escolas brasileiras reproduzem esses comportamentos de exclusão dos que de algum modo não se encaixam. No CP o fenômeno ganha ares de auto-exclusão. Alguns membros do círculo costumeiramente sentam em outras mesas, com colegas de sala ou projeto.
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