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    — Uma interpretação comum d’A Tempestade é de Miranda como um arquétipo da descoberta da adolescência, do amor romântico… Aliás, Shakespeare é um dos primeiros a falar do amor romântico, junto com Dante. — Arthur colocou, para não deixar o debate morrer em meio a uma pausa.

    — Mas não é improvável que um jovem se identifique com Próspero, por exemplo. — Roberta finalmente fez a grande questão do seu fim de semana.

    — Não, claro, — Stephany, uma garota do teatro, retrucou com certo ar de tédio — Hamlet é jovem e compartilha muito do espírito de Próspero: traído, amargo, em busca de vingança…

    Queria vingança contra alguém? Roberta se perguntava. Tinha motivos para querer da mãe, mas a entendia demais para isto, do pai, mas ainda não tinha nem entendido.

    — Eu não descreveria Hamlet como “em busca de vingança” — Arthur questionou — É mais como se a vingança fosse mais um fardo para ele.

    Um fardo. Talvez isso, a situação toda era um fardo e qualquer vingança seria apenas mais uma obrigação.

    — É talvez um pouco mais que isso — Stephany não queria voltar atrás — Eles são heróis e uma das definições do heroísmo é a reticência em apelar para a violência, a hesitação diante do mal.

    — Macbeth também hesita. — Pâmela começa lenta, procurando as palavras, antes de concluir de uma vez — É por isso que ele parece tanto um herói?

    — Pode ser… É uma proposta interessante. — Stephany pela primeira vez parecia ter uma dúvida sobre Shakespeare — Mas Próspero, a bem da verdade, não é hesitante. É comedido, mas decidido. Lembra mais o heroísmo medieval, que é grandioso e glorioso que o moderno, que é humano.

    — É, ele é bem cuidadoso. — Roberta tenta recapitular tudo — Ele faz questão dos tripulantes estarem todos vivos, testa o príncipe mas não é cruel. Além de tudo, perdoa Antônio e Calibã…

    — Me ocorre que A Tempestade é Romeu e Julieta que deu certo. — Arthur preenche o vácuo da frase de Roberta que não chegou a acabar por completo.

    — Não é verdade. — Stephany respondeu com veemência — Não há conflito estabelecido entre Próspero e Alonso, mas com Antônio. E é ele mesmo que planeja o namoro de Miranda e Ferdinando.

    — Mas Alonso estava com Antônio. — Arthur retruca sorrindo — Precisa ser convencido de que Próspero é o certo e Antônio trama contra ele. Mas, guardadas as proporções, só acho que se Romeu e Julieta tivessem contado aos pais como Miranda e Ferdinando a coisa teria acabado melhor.

    — O que é isso? — Pâmela pergunta sarcástica — Lição de moral? Você não é meu psicólogo para eu pagar para me afrontar.

    — Como eu não estou sendo pago, acho que é por conta da casa. — Arthur devolve com um sorriso ainda maior, diretamente proporcional à cara enfezada de Pâmela. Roberta observava a rusga sem entender nada, alguma história anterior entre eles, concluiu.

    — Você acha que Romeu e Julieta teria final feliz se contassem aos pais? — Stephany pergunta, pouco interessada na quase briga acontecendo.

    — Eu e o frade. Seria só uma questão de contar com jeitinho, sem mencionar visitas noturnas e tal — ele explica sorrindo para Pâmela de novo.

    — Ah! — Pâmela abre uma expressão fingida e exagerada de revelação — É por isso que gostam de empurrar A Tempestade para os jovens. Não tem cenas de sexo.

    — Mas Miranda continua abaixo da idade de consentimento para os padrões modernos. — Marcus fala pela primeira vez, com um leve tom de tédio na voz — Aliás, Dante se apaixonou por Beatriz quando ela tinha nove anos. Todo mundo é meio pedófilo nessa era.

    O comentário de Marcus mergulhou a sala no silêncio, Roberta não sabia se pelo conteúdo, subitamente pesado, ou pela forma arrastada, entediada. Arthur começou a procurar nas anotações algo para manter a conversa fluindo quando Carla falou, também pela primeira vez.

    — Uma coisa que não pude deixar de reparar é que as duas citações famosas da peça, são famosas fora de contexto. “Hell is empty, all demons are here” não significa que as pessoas são más e “Brave new world” não é irônico.

    — Aí eu discordo! — a voz de Stephany era muito mais alta do que o necessário na sala de aula com poucos estudantes. — “Hell is empty” está logo no início junto com quando você descobre que a tempestade é vingança de uma injustiça antiga e “Admirável mundo novo” é dito pela inocente Miranda e desmentido pelo experiente Próspero. Então, no mundo ficcional não tem esse sentido, mas na obra tem. O mundo de Huxley parece admirável para um olhar inocente e o mal mundano, a traição do irmão, é a causa da peça. O Exílio, a vingança de Próspero. Não é o que a gente lê, porque está acontecendo com eles em outro contexto.

    Enquanto Stephany falava Carla se encolhia na cadeira, incapaz de dar uma resposta, ou rendição, que Stephany parecia aguardar, mergulhando a sala, de novo, no silêncio, que foi quebrado não por Carla, mas por Pâmela.

    — Será que o cara estava mesmo pensando nisso tudo quando escreveu? Às vezes eu acho que metade do gênio dos gênios é a gente nessa masturbação mental de enfiar na peça coisas que não estavam lá.

    — É claro que estão lá! — Stephany reagiu à provocação como se fosse uma ofensa pessoal, enquanto Pâmela usava seu melhor olhar de “tô nem aí”. — Tem elementos claros de metanarrativa n’A Tempestade, identificando Próspero ao próprio Shakespeare e a magia à ilusão ao teatro. O respeito às três unidades clássicas…

    Com a ajuda inesperada, Carla voltou a respirar e ocupar o espaço que devia na carteira, enquanto Arthur folheava as anotações com mãos agitadas. Pâmela parecia ser a única pessoa a vontade com a agressividade inesperada que o debate adquiriu.

    — Só uma tábua ouija pode responder, — Marcus interrompeu com sua voz entediada. — “O inferno está vazio” faria sentido objetivamente, no sentido que usamos hoje, se fosse dito por Próspero. Mas como está na peça é possível argumentar que esteja no metatexto. Preferimos acreditar que está e que isto torna Shakespeare genial.

    — Shakespeare é overrated. Pronto, falei. — Pâmela provocou ainda mais diante da tentativa de Marcus de encerrar o tópico. Stephany apertava as mãos até as juntas ficarem brancas, mas não disse mais nada. Ela parecia se importar muito com a opinião dos outros sobre Shakespeare.

    — E quem não é, para você? — Arthur finalmente achou a oportunidade que estava procurando para entrar na discussão.

    — Não vou chamar ele de pretensioso, se é isso que está esperando, — ela respondeu direto para esse passado dos dois que Roberta não conhecia. — Ele não era. Fazia pulp fiction, mas nós ouvimos desde que nascemos que ele é um gênio. Ele e Balzac, Swift, Twain. Todos faziam o que vendia, que nem Paulo Coelho.

    — Quem escreve para ser arte é pretensioso. Quem escreve para vender faz pulp fiction. — Arthur concluiu — Quem se salva para você?

    — Não estou dizendo que a peça é ruim. — Pâmela retraiu um pouco a agressividade para depois acrescentar — Só que o fandom dele quer ver “a vida, a verdade e a luz” onde tem só um pouco de bom e velho entretenimento.

    A raiva de Stephany parecia ter acalmado, mas não diminuído, diziam os olhares gelados que ela lançava para Pâmela, que fingia não ver.

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