06 — A Família
por Cochise CésarO jantar tinha passado em silêncio completo. Só quando recolhia as vasilhas a mãe falou.
— Como foi sua terapia?
— Não é terapia.
Ela já estava na cozinha lavando os pratos quando perguntou de novo.
— E como foi?
— Foi bom. — respondeu, sem conseguir falar algo que realmente significasse alguma coisa. — Eles são legais.
Roberta foi para o quarto logo depois. As palavras de Paula não saíam da cabeça mas não conseguia achar palavras para dizer para Agda o que queria. Metade das suas coisas ainda estavam dentro de caixas. Não tinha tido vontade de guardá-las novamente. As noites tinham sido silêncio inundando o apartamento de dois quartos. Assim que sentou, lembrou que entre as coisas do pai estavam livros do Shakespeare. Deviam estar nas caixas da mãe.
Queria ir ao clube de leitura? Artur era um cara estranho. Tinha a impressão de ter visto apenas a ponta de um iceberg, e queria ver o resto. Queria ir ao clube de leitura. “Eles são legais,” a frase voltou. Guilherme tinha reunidos ali gente de todos os tipos, mas sim, eram legais. Paula tinha um crucifixo ostensivo no peito. A tensão entre ela e Artur sobre o catecismo tinha sido quase palpável. Talvez ela que tivesse levado a atividade para lá. A ideia de um projeto de magia negra no contraturno era ridícula, completamente ridícula. Não pôde deixar de rir-se da ideia, mas colocada lado a lado com o catecismo emprestava seu ridículo a este. O tipo de associação que Artur parecia fazer com facilidade. No caminho de volta se lembrou do modo sutil mas firme com que Agda tinha rejeitado todas as manifestações de solidariedade, pena e pesar. Ela poderia achar outro emprego fácil em Icém, ou mesmo pedir um aumento. Tinha sido vergonha, sem dúvida, e tinha a impressão que Artur sabia disso desde que tinha respondido.
Denis era o que parecia mais afetado. Parecia querer ficar de perfil para todo mundo ao mesmo tempo, sempre de cabeça baixa para esconder a cicatriz que restou do lábio leporino, tinha passado horas tentando lembrar o nome, e sempre tentando ser útil. Paula parecia ter chegado a bom termo com seu peso, ao menos na maior parte do tempo. No Círculo, tinha falado da nova dieta em que sua mãe a tinha colocado. “Às vezes parece que minha mãe só vai gostar de mim no dia que eu for magra.” Ela tinha os olhos perigosamente brilhantes quando disse isso, será que já tinha corrido para o banheiro como ela hoje? “E se te colocar nessas dietas for a maneira dela mostrar que gosta de você?” Guilherme perguntou logo depois e parecia cena repetida de um filme exibido demais, mesmo tendo visto pela primeira vez; como a despedida de Casablanca, que nunca tinha visto e já estava cansada de ver.
Levantou da cama decidida a achar os livros. Por algum motivo Pâmela lhe lembrava Agda, não a com quem cresceu, mas a com quem morava. A que sempre parecia estar no lugar errado, com algo faltando. O ar blasé com que tinha falado sobre a bronca que levou por chegar tarde em casa, como se fosse nada, e a voz submissa com que falava com o pai ao telefone, a pressa com que correu para a saída. Alguma coisa que não se encaixava.
— Onde estão os livros do pai? — perguntou à porta. No quarto com ainda mais coisas ainda encaixotadas que o seu, Agda assistia TV na cama.
— Junto com as outras coisas dele. Em Icém. — ela respondeu sem desviar os olhos da TV.
— Preciso d’A Tempestade. — Tinha deixado tudo em Icém? Se lembrava dela embalando as coisas dele. — Tem um trabalho na segunda. — tinha embalado para deixar com alguém? — Estão com tio Ricardo?
Agda pegou a bolsa no criado-mudo e dentro desta a carteira. — Doei para o centro espírita. — respondeu com voz inexpressiva — Devem fazer um bazar da pechincha por esses dias. — Estendeu uma nota de cinquenta reais para Roberta. — Compre um.
Roberta caminhou mecanicamente até a cama e pegou a nota sem uma palavra. Na porta antes de sair murmurou “Obrigada.” Assim que chegou no quarto afundou na cama e abafou as lágrimas no travesseiro. Não eram suas coisas, não devia sentir tanto. Não queria nem metade delas. Não sabia há quanto tempo estava lá quando entendeu por que Agda chorou tanto ao empacotar as coisas do Ronaldo: era um ritual fúnebre, um adeus.
— Ele não está morto. — murmurou — Não estamos mortos. Ainda somos uma família.