12 — Os Livros
por Cochise César— Claro. Podem ficar até com tudo. — Cida respondeu indignada. — Sua mãe fez uma coisa muito errada em me dar tudo isso.
— Ela está muito triste… — Roberta defendeu Agda no automático.
— Meu filho também fez uma coisa muito errada com ela, — Beatriz interrompeu com voz suave — entendo ela estar com raiva. Mas dois erros…
— Não fazem um acerto. — Cida completou.
— Vou separar só umas coisas; quarta vou à Catanduva e pergunto o que ele quer guardar. — Beatriz explicava abrindo uma caixa — Vai fazer bem pra todos nós desapegar da maior parte disso aqui. Se puder esperar até quarta…
— Espero, sim, até mais. — Cida garantiu, enquanto Roberta avaliava o peso das caixas para achar onde estavam os livros — Na verdade, pra mim, isso tudo ainda é dele. Doação como essa a gente não pode aceitar. Até porque essas coisas não são só dela, mas dele e de vocês duas, também.
Roberta abriu uma caixa de livros enquanto ouvia a conversa das duas, quase todos manuais e livros técnicos, era técnico de automação, viajava muito para prestar suporte em outras cidades, principalmente nas usinas de álcool, o motivo de estar em Catanduva.
“Se ela pudesse me doar…” se pegou pensando com A Arte da Guerra nas mãos “doaria?”.
Roberta, como os tesouros, ferramentas, objetos, roupas e badulaques nas caixas eram coisas que só estavam na vida de Agda por conta de Ronaldo, o homem que ela tentava apagar. O homem que tinha uma amante em Catanduva e que a matou estrangulada em um surto de psicose ou coisa que o valha. A amante que era vereadora e fez o Estado, o país inteiro saber que Ronaldo traía Agda quando viajava a trabalho, e de súbito, suspeita sobre todas as viagens. Enquanto ela, em Icém, fiel como Penélope, ele Odisseu, uma amante por ilha. Roberta achou a Odisseia um absurdo quando o professor de História passou o filme para a sala na sexta série. No bimestre seguinte, “os papéis da mulher ao longo dos anos”, por causa da discussão violenta em sala. Entre mortos e feridos, duas inimizades figadais nasceram deste bimestre, Jeane e Paulo.
Achou o volume que motivou tudo, a lembrança resgatada pela Tempestade. Pequeno, capa vermelha, velho. “Trabalhos selecionados de Shakespeare”, mas apenas Hamlet, A Megera Domada e Otelo, aliás o livro é o volume três de uma coleção, mas só se lembrava de um em casa. Talvez comprado em um sebo, talvez um exemplar emprestado e nunca devolvido, talvez ganhado de presente. As coisas têm histórias secretas, Ronaldo tinha histórias secretas. Agda vivia uma história secreta bem ao seu lado, como se não fosse nada de mais.
— Não é bom esse livro. — Beatriz comentou, quebrando a imobilidade em que estava nos últimos segundos, “Dogma e ritual da alta magia” entre os dedos.
— Ronaldo mexia com isso? — Cida perguntou, assim que viu o livro.
— Ele dizia que era só curiosidade, mas nunca gostei. — Beatriz explicou. Esse livro não faz bem pra você, Roberta. Me deixa dar um fim nele.
— Sim. — entregou o livro sem mais palavras e Beatriz o pousou, capa para baixo, em cima de uma caixa, para por logo uma camisa em cima. Tinha visto esse livro poucas vezes, Ronaldo fazia questão de o manter escondido. Uma vez o levou em uma viagem curta, sem mala; embrulhou em papel pardo para levar. Claro que estaria aqui, mas não podia deixar de lembrar dos símbolos na escola. Era sua pequena história secreta, que talvez até se encontrasse com os segredos das caixas, dos livros secretos do pai, mas que era seu segredo. Não pôde deixar de sorrir, o que diante de “Máquinas Térmicas de Fluxo” parecia até estranho.