10 — A Viagem
por Cochise CésarO Sol descia no horizonte incendiando as plantações de cana e abacaxi que passavam pela janela do ônibus. Ainda era sábado, ia dormir em Icém, na casa da avó.
— Oi, Roberta. — Aparecida respondeu ao telefone animada como sempre — Estava esperando você ligar.
— Oi, Cida, — Roberta sussurrava ao telefone com medo de ser ouvida no quarto ao lado — eu queria saber se vai ter pechincha amanhã.
— Sim, mas as coisas do Ronaldo não vão para lá.
— Como voltar para casa…
Em Icém havia quem gostasse dela, de verdade, desde sempre. Cida era só uma conhecida, dona da papelaria ao lado da escola onde comprava balas e papel almaço desde sempre e tinha guardado quase tudo do pai, só separado algumas roupas e enviado para ele em Catanduva.
— Vai fazer bem para você, mesmo que não fale nada — Magda, a supervisora, disse — Vai te ajudar a se enturmar. Não é bom você ficar muito sozinha.
Segunda, quando chegou, quando revelou por que estava em Rio Preto, tinha sido celebridade, tinha sido quase interrogada por todos, centro das atenções, alvo das curiosidades. De terça para frente tinha sido pária, ignorada por todos, temida por todos. Ouviu cochichos o bastante para saber que tinham descoberto quem era o pai. Não estava escondendo nada, claro que descobririam.
— O irmão do Gino fez uma coisa muito ruim — a professora disse em voz grave — e a família toda dele está sofrendo por causa disso.
Quando estava na quarta série o irmão do Gino, colega de classe, matou alguém. Ele deixou de ir à escola por uma semana e logo antes de voltar a professora interrompeu a aula para conversar.
— Ninguém é culpado pelo que outra pessoa faz, então não é justo castigar alguém pelo que outra pessoa fez.
Quando ele voltou, fizeram fila para abraçá-lo, ele não parava de chorar. “Se eu tivesse uma Tia Fernanda…” Sorria com o sol acendendo labaredas no peito. Será que tinham medo que surtasse e estrangulasse alguém? Ninguém reclamava “você sentou no meu lugar”, mas ninguém perguntava também “o que você vai fazer no contraturno?”. Ninguém, menos o Círculo.
— Vocês são legais e o Gino está em um momento difícil. Gente legal ajuda quem está em dificuldades.
Fernanda virou diretora por causa disso. Alguém tirou uma foto da sala abraçando Gino e ela ficou na parede dela no tempo em que ela foi diretora, mas nessa época já tinha mudado da escola do Fundamental I para a escola do Fundamental II. Gino chamou toda a antiga sala para dar um abraço de parabéns nela, que não parava de chorar.
— “Admirável mundo em que vivem essas pessoas maravilhosas”.
Talvez porque a semana tenha passado rápido demais, só voltando para Icém Roberta percebeu o que tinha ficado para trás, só dentro do ônibus, com a cidadezinha no horizonte, A Tempestade, que tinha lido na noite anterior, fez sentido:
— Eu não sou Miranda. Sou Próspero.